quarta-feira, 15 de agosto de 2007

J.P. Coutinho

Da série "reproduzindo os raríssimos artigos úteis da Bolha de São Paulo para que não seja necessário assinar o tablóide", abaixo seguem 2 artigos de João Pereira Coutinho na íntegra:


JOÃO PEREIRA COUTINHO

Não existem homossexuais

Acreditar que um adjetivo se converte em substantivo é uma forma de moralismo pela via errada

NÃO CONHEÇO homossexuais. Nem um para mostrar. Amigos meus dizem que existem. Outros dizem que são. Eu coço a cabeça e investigo: dois olhos, duas mãos, duas pernas. Um ser humano como outro qualquer. Mas eles recusam pertencer ao único gênero que interessa, o humano. E falam do "homossexual" como algumas crianças falam de fadas ou duendes. Mas os homossexuais existem?
A desconfiança deve ser atribuída a um insuspeito na matéria. Falo de Gore Vidal, que roubou o conceito a outro, Tennessee Williams: "homossexual" é adjetivo, não substantivo. Concordo, subscrevo. Não existe o "homossexual". Existem atos homossexuais. E atos heterossexuais. Eu próprio, confesso, sou culpado de praticar os segundos (menos do que gostaria, é certo). E parte da humanidade pratica os primeiros. Mas acreditar que um adjetivo se converte em substantivo é uma forma de moralismo pela via errada. É elevar o sexo a condição identitária. Sou como ser humano o que faço na minha cama. Aberrante, não?
Uns anos atrás, aliás, comprei brigas feias na imprensa portuguesa por afirmar o óbvio: ter orgulho da sexualidade é como ter orgulho da cor da pele. Ilógico. Se a orientação sexual é um fato tão natural como a pigmentação dermatológica, não há nada de que ter orgulho. Podemos sentir orgulho da carreira que fomos construindo: do livro que escrevemos, da música que compusemos. O orgulho pressupõe mérito. E o mérito pressupõe escolha. Na sexualidade, não há escolha.
Infelizmente, o mundo não concorda. Os homossexuais existem e, mais, existe uma forma de vida gay com sua literatura, sua arte. Seu cinema. O Festival de Veneza, por exemplo, pretende instituir um Leão Queer para o melhor filme gay em concurso. Não é caso único. Berlim já tem um prêmio semelhante há duas décadas. É o Teddy Award.
Estranho. Olhando para a história da arte ocidental, é possível divisar obras que versaram sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. A arte greco-latina surge dominada por essa pulsão homoerótica. Mas só um analfabeto fala em "arte grega gay" ou "arte romana gay". E desconfio que o imperador Adriano se sentiria abismado se as estátuas de Antínoo, que mandou espalhar por Roma, fossem classificadas como exemplares de "estatuária gay". A arte não tem gênero. Tem talento ou falta de.
E, já agora, tem bom senso ou falta de. Definir uma obra de arte pela orientação sexual dos personagens retratados não é apenas um caso de filistinismo cultural. É encerrar um quadro, um livro ou um filme no gueto ideológico das patrulhas. Exatamente como acontece com as próprias patrulhas, que transformam um fato natural em programa de exclusão. De auto-exclusão.
Eu, se fosse "homossexual", sentiria certa ofensa se reduzissem a minha personalidade à inclinação (simbólica) do meu pênis. Mas eu prometo perguntar a um "homossexual" verdadeiro o que ele pensa sobre o assunto, caso eu consiga encontrar um no planeta Terra.



JOÃO PEREIRA COUTINHO

Não matem o bebê

Na passada semana, o mundo escutou uma confissão. Será necessário relembrar? Khalid Sheikh Muhammed, que a CIA capturou em 2003, confessou uma longa lista de crimes que o transformam facilmente no maior terrorista da história. Segundo o próprio, Khalid foi o responsável supremo pelos atentados do 11 de setembro de 2001. Foi o executor material do jornalista Daniel Pearl, decapitado no Afeganistão em 2002. Foi o responsável pelo primeiro ataque ao World Trade Center, corria 1993. E, por vontade sua, tencionava repetir as proezas nos quatro cantos do globo, se Washington não tivesse chegado primeiro.

Infelizmente, Washington chegou primeiro e a maioria dos comentadores não perdeu um minuto de tempo a escutar as palavras da Khalid. As palavras do homem não merecem "credibilidade" porque as condições da captura, da prisão e do interrogatório viciaram o resultado final.

Eu não tenciono contestar a sabedoria e as absolutas certezas dos comentadores. E, em voz baixa, também confesso que não compro toda a história de Khalid, um evidente psicopata (e criminoso) que, com a pena de morte à frente, deseja partir deste mundo embrulhado na mortalha do heroísmo e do martírio.

Mas, em voz ainda mais baixa, eu não estou disposto a acompanhar a manada para o outro lado da cerca: o lado que transforma Khalid numa vítima do sistema "imperial" americano, incapaz de matar uma pulga e subitamente forçado a inventar tenebrosas ficções. Existe uma diferença entre acreditar em tudo, acreditar em alguma coisa e não acreditar em coisa alguma.

Essa diferença tem sido ignorada desde o 11 de setembro de 2001 e Nick Cohen, jornalista britânico e um homem de esquerda, enfrenta o problema em livro recente ("What's Left? How Liberals Lost Their Way"): com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o triunfo das economias de mercado sobre as variantes planificadas que apenas produziram miséria e tirania, as consciências "liberais" (ou seja, as consciências mais à esquerda) procuraram uma nova bandeira que as servisse. A bandeira foi rapidamente encontrada e erguida contra os Estados Unidos, independentemente dos atos praticados por Washington.

Se os Estados Unidos não agiam (como sucedeu, ao início, com os dramas do Timor antes da independência), Washington era acusado de isolacionalismo criminoso. Se os Estados Unidos agiam (como sucedeu no Afeganistão contra uma quadrilha reconhecidamente fanática), Washington era acusado de intervencionismo criminoso. Por ação, por inação -- o Mal tinha sempre nome e endereço.

E se falamos de Mal, falamos de Bem por contraste. Para Cohen, a falência do "socialismo real" não implicou apenas a demonização da América. Implicou a tolerância, e muitas vezes o apoio explícito, a ditadores ou terroristas que muito apropriadamente não falavam inglês. Contra a América, Saddam servia. Contra a América, o Taleban servia. Contra a América, Bin Laden servia. Porque os inimigos dos meus inimigos, meus amigos são. Ou não?

Nick Cohen recusa essa idéia infame e termina o ensaio com pergunta curial e até pessoal: como podem estas esquerdas recuperar a decência, depois da longa dança com ditadores e torcionários? A resposta, sem grande imaginação, talvez passe por separar as águas. Ou, mais especificamente, por não deitar fora o bebê com a água do banho.

Por incrível que pareça ao fanatismo anti-americano que anda por aí em festa, nas ruas de Londres, Damasco ou S. Paulo, é possível criticar a América de Bush, a inutilidade de Guantánamo, os erros do Iraque e a política externa dos "neoconservadores" sem necessariamente convidar terroristas ou psicopatas para jantar lá em casa.

Quando Khalid Sheikh Muhammed confessou o que confessou, a resposta do auditório não é rir de tudo. É perguntar, com prudência e ceticismo, que parte do espetáculo pode ser verdade.

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